quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Um velho amigo, e um velho problema: Charlie. (Annie, uma História e um Café - II)

Leia: Annie, uma História e um Café - I

Quando sentei-me à mesa, deu um sorriso e falou:
- O tempo só fez bem para você, Gabriel. Estou acabado, e hoje tenho mais certeza disso. Lembra de mim? Sou Benjamin!

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Há algumas semanas ela está aqui comigo, e me acompanha em minhas viagens. Estou vendendo livros e tocando piano em bares a noite, para me livrar de tanta ressaca, e de tanta inutilidade. Sinto-me no dever de dar um bom exemplo a ela, e é claro, ter como sustentá-la enquanto procuro por seu caminho. Ela já confia em mim, e isso me deixa tranquilo.

Em uma noite dessas, fui convidado a tocar em um bar de blues, por alguém que gostou do que leu em meus textos. A noite estava agradável, o piano era incrível, e a dona do bar permitiu que eu levasse Annie, para que ficasse na biblioteca de sua sala de estar. Apesar de ser criança, Annie gosta de uma boa leitura. Evidentemente, a senhora que me convidou não sabia da verdade. Apenas disse a ela que era uma sobrinha que passava o fim de semana comigo. Era sábado a noite.

Após tocar um ótimo repertório, tomar umas doses de Whisky, e fumar quatro cigarros, dei uma pausa. Um homem aparentemente de minha idade, que sentava próximo ao lugar em que eu estava tocando, acenou, pedindo para que me sentasse com ele.  Atendi ao pedido. O rosto me era familiar, e algo muito bom me esperava por ali.

Quando sentei-me à mesa, deu um sorriso e falou:
- O tempo só fez bem para você, Gabriel. Estou acabado, e hoje tenho mais certeza disso. Lembra de mim? Sou Benjamin!

Não poderia ter surpresa melhor. Fomos grandes amigos em nossa infância, mas seus pais se mudaram para outro país. Ele era adotado, e seus pais tinham idade para ser seus avós. Quando Benjamin completou 12 anos, se mudaram para a Alemanha, onde eles haviam passado sua infância. Decidiram isto, a fim de dar melhor qualidade de vida ao garoto.

Estava de férias por aqui, e teve imensa surpresa ao ver meu nome em um cartaz de um bar qualquer. Conversamos por muito tempo, até que eu decidi compartilhar o que eu estava me aventurando a fazer, sem ao menos sombra de resultado algum. A princípio me achou louco - evidentemente. O melhor da história foi convencê-lo de que ela precisava encontrar sua mãe, se esta ainda estivesse viva, usando a própria história de Benjamin, que não teve esta oportunidade.

Combinamos um encontro em um café na manhã seguinte, no qual levaria Annie, e tentaríamos traçar um plano, coletar dados, organizar nossas peças. Às quatro da manhã, tive que carregar Annie no colo, e levá-la para o carro. Estacionei em um lugar qualquer, e deixei-a dormindo no banco de trás, como eu mesmo fazia quando estava bêbado a ponto de não poder mais caminhar - adquiri responsabilidade com a companhia dela.

Sentei no meio fio ao lado, e acendi um charuto. Contemplei o luar, vi pessoas passando de lado a outro, um cão urinar no pneu de meu carro, um casal apaixonado no banco da praça, e um bêbado - como eu outrora - deitado na grama imaginando, talvez, que estivesse em um hotel de luxo. Fiquei ali quase uma hora. Era uma madrugada deliciosa, e ao mesmo tempo intrigante. Estava, de fato, ansioso pelo encontro com Benjamin. Depois disso, fui para o carro, e dormi no banco do motorista.

Às 10h da manhã, estávamos lá. Contei sobre Benjamin a Annie no caminho, e ela se mostrou tão aventureira quanto eu. Me impressionava cada segundo com a sua vontade de voltar para casa, e pela disposição e coragem de correr atrás disso. Nem eu fui assim há tempos atrás, nem por um velho amor, nem por dinheiro, nem pelos meus sonhos. Annie realmente era um anjo.

Após várias xícaras de café, decidimos que iríamos até o orfanato de onde Annie havia fugido. Naquele velho inferno, quem sabe poderíamos encontrar o nosso caminho. Fizemos uma ligação para Monique, uma velha amiga que muito confiei em minha juventude, que possuía uma pousada em uma fazenda, que ficava no caminho do orfanato onde iríamos. Ela prontamente aceitou cuidar de Annie enquanto estivéssemos fora. Realmente, o destino estava ao nosso favor.

No dia seguinte, partimos. Fomos à casa de Monique, e de lá ao nosso destino.

O lugar onde Annie passou esses anos era sombrio. Com paredes cinzentas, janelas com grades enferrujadas, e muitos vidros quebrados. Fomos recepcionados por um rapaz cego de um olho, que nos direcionou ao escritório. No caminho, fez questão de nos contar que estava ali desde os 2 anos, e que viu muita gente ser abandonada ali. Disse que seus pais morreram em um incêndio, e que não tinha outros familiares por perto.

O lugar me deixou perturbado. Este sentimento crescia a cada minuto. Ora pelos berros nos corredores, ora pelo choro de uma criança que havia sido atacada por outra, por causa de um colar de coração, o qual não revelava o conteúdo do seu interior a ninguém.

Quando já estava a ponto de desistir da espera angustiante, ouço a voz de uma conversa no corredor. Uma voz adulta feminina e uma masculina, em meio à bagunça de um inferno de berros e coisas caindo ao chão.

Eles param à porta, do lado de fora, e eu ouço a conversa. O nome do sujeito era Charlie. Benjamin assim que ouve sua voz, parece ficar sem cor. Sinto um choque em meu peito, e de repente, tudo parece estar fazendo um eco a minha volta, em meio ao silêncio mortal de meus pensamentos. Ele fala algo sobre uma sobrinha que tinha paradeiro desconhecido, e que suspeitava que ela estivesse ali. Suspeita era a sua voz, e a falta de reação de meu amigo.

A conversa começou a tomar distância novamente pelos corredores, caminhando na mesma direção de outrora. Levantei-me e comecei a procurar pela sala algum tipo de arquivo de quem estava aos cuidados daquele lugar. Benjamin, sempre à porta, ficava atento aos ruídos, tentando evitar qualquer surpresa.

O nome de Annie não constava na lista de internos. No desespero, em poucos minutos encontro na gaveta da escrivaninha, uma pasta com uma etiqueta, escrita:

"BAIXAS - ADOÇÕES"

Sobre todos os outros papéis, encontro três papéis sobre Annie, os quais coloco rapidamente no bolso do meu casaco. Trêmulo, coloco a pasta na gaveta, fecho, e vou para a porta, que está entreaberta. Quando abro, me deparo com uma mulher realmente assustadora. 
- O que faz aqui? - Me perguntou.
- Vim oferecer meus trabalhos. Sou professor de música, e meu colega de poesia. É de seu interesse? - Respondi com outra pergunta, tendo certeza do que ouviria.
- Nossas crianças não precisam de música muito menos de poesia. Saia daqui, pois eu tenho mais o que fazer - Retrucou. 

Olho para Benjamin, tentando uma cara de desapontamento, e me retiro na sala, seguido por ele. Vamos até o carro, damos a partida, e quando estamos entrando na rodovia, ele finalmente consegue falar.
- Foi por pouco - disse, aliviado.

Enquanto eu dirigia, ele analisava os papéis de Annie. Eram três folhas, datadas de nove anos atrás. Na primeira, o suposto doador da menina recém nascida, Charlie W. L'man. Na segunda, uma certidão de nascimento de Annie, datada de 9 anos atrás, e na terceira,  a certidão de óbito da suposta mãe de Annie, Sophie Fester.

Me senti desolado ao tomar conhecimento de tudo aquilo. Mas neste momento, algo veio à memória: Um fim de tarde, ao pôr do sol, sob uma árvore, no qual Annie me contou pela primeira vez a sua história. Foi quando pedi ao meu velho amigo: "Quem será Charlie?"
- Charlie é o sujeito que conversava do lado de fora da porta! Sua voz é inconfundível. Ele é temeroso. Você logo lembrará dele. Certa vez, quando minha pintura foi a mais elogiada na exposição de nosso colégio, a de Charlie ficou em segundo lugar. Poucos minutos depois do sumiço dele, todo o barracão da exposição pegou fogo. Isso não refresca a sua memória?

Como poderia ter esquecido da figura mais mimada de minha infância! Ele sempre buscou ser o melhor, da pior maneira. Trapaceava, menosprezava, comprava. Ele tinha dinheiro. Pagava surras aos outros, a fim de ganhar mais ainda. Por um tempo, tentou ser meu amigo, apenas porque achava que sendo eu "menor" do que ele na hierarquia da vida, seria mais um submisso ao seu salário barato de amizade comprada. Charlie hoje é agiota, segundo Benjamin. 

Estávamos com os documentos de Annie; com um documento de adoção assinado - valia muito mais do que qualquer cheque em branco -; e com uma direção: Charlie. Restava agora saber a ligação entre o sujeito e a mãe de Annie.

Passamos pela casa de Monique, na volta. Ela passeava com Annie sobre o querido Ázigos, seu cavalo. Fez bem à menina estar ali. Fez bem à Benjamin e eu encontrarmos Charlie acidentalmente - ou não -, e os documentos que poderiam nos conferir temporariamente a guarda de Annie. Monique insistiu para que passássemos a noite ali. Jantamos com ela, descansamos merecidamente no melhor quarto, e partimos pela manhã.

Antes de partir, traçamos uma rota para o litoral, no qual Charlie passava o primeiro fim de semana de cada mês, em um hotel no centro da cidade. Estávamos em plena segunda-feira, dia trinta. Emprestei o telefone de Monique, e me candidatei a tocar piano em uma noite de jantar daquele hotel. Evidentemente, não foi tarefa fácil. O responsável não entendia a minha insistência, mas depois de muitos argumentos, incluindo a mentira de que seria um retorno a um passado épico, um perfeito sonho, e gratuito - que é a única verdade -, ele aceitou a proposta. Tocaria em um sábado a noite, no primeiro fim de semana do mês. Benjamin me acompanharia até lá, e após a apresentação, embarcaria para a Alemanha.

A viagem foi tranquila, ao som de boa música. Benjamin pagou-nos o hotel, e eu nunca esquecerei disso. Pegamos um bom quarto, demonstrei as músicas no piano, e fui finalmente aprovado. Restava agora aguardar o jantar, e ensaiar um modo de me aproximar de Charlie. Annie entendeu muito bem que só poderia sair do quarto quando fossemos embora. Mesmo sem não ter havido nenhum encontro entre os dois dentro de nove  anos - pelo menos, Annie diz não lembrar -, todo cuidado era pouco. Ela faria o possível para não voltar mais para o inferno de onde havia vindo.

Benjamin teve algum contato com Charlie há alguns meses. Eles detinham ações de uma mesma empresa. Evidentemente Charlie dominou esta parte após receber o calote de uma dívida. Chantagista como só ele, conseguia o que queria. Benjamin me garantiu que teria assunto de sobra com ele, até eu ter um intervalo.

Como previsto, os dois beberam o suficiente para que eu fosse o mais sóbrio. Benjamin nunca bajulou ninguém como naquela noite. Assim que tive folga do piano, Benjamin acenou para mim, e disse à Charlie que eu sentaria com eles. Ora, eu me prestei a alugar uma roupa finíssima, e passei o meu melhor perfume. Meu posto na ala  nobre do jantar era merecido.

Chamamos uma rodada de conhaque, com uma graduação excelente. Benjamin estava restrito à tontura. Charlie, rastejando em suas palavras. Lancei um olhar para Benjamin. O suficiente para ele começar a conversar sobre o dom de agiota de Charlie, sua ótima desenvoltura nos negócios, e sua notável experiência de tirar o melhor proveito de tudo. Sabíamos que algum contato ele teve com Sophie, e temia ouvir sobre sua morte.

Aproveitei o estado ébrio dos dois, e perguntei a Benjamin:
- Ouvi falar que você teve problemas com uma certa Sophie tempos atrás...
- Quem entende de "Sophies" é Charlie - Me retrucou.

Gargalhei como se estivesse bêbado como eles. A sorte estava lançada. Poderia perder tudo naquele momento. Ou simplesmente ter a resposta que mudaria o rumo de minha vida. Para minha surpresa, Charlie estava em um nível alcoólico digno de um interrogatório.
- A única Sophie que eu conheci na minha vida, foi uma caloteira. Perdoei a dívida da infeliz, mas ela ficou sem a filha. As vezes é necessário pagar pecados - Disse Charlie, seguido de uma gargalhada alcoólica.

Tudo passava a ter um sentido. Não sabia se Sophie ainda estava viva, mas uma coisa era certa. Se estivesse com uma arma na cintura, certamente teria deportado Charlie ao inferno, naquele mesmo momento.